
"Minha mãe queria que eu fosse freira, sem saber que eu já era viúva de James Dean." Poderia ser apenas mais um caso da jovem artista caçando atalhos que a desviassem das linhas maltraçadas pelos pais. Só que seguir as escapadas da garota Rita Lee jones conta, por tabela, todos os capítulos da história do país do carnaval que digeriu o rock'n rol!. Capricorníana da turma de 47, sangues italiano, americano e pele-vermelha misturados no caldeirão da capital paulista, e a logo ficou sabendo, na escola não se falava em outra coisa.
No começo, eram a voz e os quadris de Elvis, em ritmo de sinuosos e insinuantes vaivéns. Em casa estava proibido: não havia vitrola e a ordem do dia-a-dia era estudar. Depois, sempre às escondidas, mais dois golpes fatais: Beatles, claro, e o pop doce-ensolarado dos Beach Boys. Rita acabou montando, com duas amigas, seu próprio grupo. De noite a colegial saltava pela janela e virava cantora-baterista das Teen Age Singers. Uma via-sacra de shows em escolas, bailinhos de formatura e até calouros na TV.
Logo vem a passagem, de raspão, pelo primeiro capítulo da história. "Descobertas" por Tony Campelo — irmão da Cely —, as três gravam alguns corinhos de fundo para a primeira safra do rock paulistano — gente que depois ia se juntar na Jovem Guarda. — Como Demetríus e os Jet Blacks. Tudo ia muito bem. Até quando a família descobre — uma crise de apendicite aguda em pleno show — e acaba liberando a filha rockeira para ouvir, dançar, cantar e tocar. Rita ganha até uma bateria de presente de formatura.
Depois da Jovem Guarda, o próximo capítulo já traz outro trio botando fogo e eletricidade no terreno da MPB. Do samba-canção tocado às gargalhadas ao twist da rua Augusta, os Mutantes faziam os rockinhos brasileiros anteriores parecerem cânticos de convento. Mas antes voltemos ao fim das Teenage Singers.
O problema da baterista era que o ídolo Paul McCartney tocava baixo. Ela também queria. Seu primeiro professor foi Arnaldo Dias Baptista que, junto ao irmão-guitarrista Serginho, também circulava pelo circuito de bailinhos e similares com os Wooden Faces. No fim das contas, somando-os ao trio de garotas, nasceu o sexteto Six-sided Rockers. E, para encurtar o conto, sobraram mesmo Rita, Arnaldo e Serginho. Batizados como O Conjunto, chegaram a gravar um compacto: O Suicida, segundo ela "um rock bem paulista que falava em se atirar do Viaduto do Chá".
O nome Mutantes só surgiu em 1966, nos bastidores do programa que Ronnie Von apresentava na TV para concorrer com as tardes de domingo de Roberto e Erasmo (onde a trinca alucinada era barrada, claro, em nome dos velhos bons costumes).
Um dia, faziam em um estúdio o habitual papel de "conho de fundo" quando cruzaram com o compositor da música, Gilberto Gil. Recém-chegados a São Paulo, Gil e Caetano tramavam o movimento Tropicalista, para ligar a MPB na tomada da era Psicodélica. Conversas foram e vieram, o baiano convidou os Mutantes para acompanhá-lo no festival da TV Record.
O histórico festival de 1967. De um lado, coloridas alegrias da Tropicália, fundindo o iê-iê-iê e o folclore nordestino numa só panela. Do outro, a chiadeira cinza-ranzinza dos puristas, torcendo pelo violão & banquinho "brasileiros" contra as guitarras "imperialistas". A televisão transmitia em clima de final de Copa do Mundo. E, bem no meio do fogo-cruzado, os Mutantes; afinal, eram deles as guitarras de Domingo no Porque.
Eles continuavam rindo. Num de seus discos avacalham sem piedade o Chão de Estrelas de Sílvio Caldas, o máximo da emepebice rebuscada. Enturmados de vez com a troupe tropicalista, lá estão eles na capa e no recheio de Tropicália, o famoso disco-manifesto do movimento. E vão continuar anarquizando: Rita de noiva grávida, Arnaldo saído da Idade Média e Sérgio de toureiro. Aparece até um abaixo-assinado dos tradicionalistas, críticos e músicos, pedindo a proibição das guitarras.
O pessoal esperneia mesmo quando o grupo grava um jingle para a Shell. A verdade é que o merchandisíng vai fundo. Em 1969, chega a vez do grupo se apresentar em Paris, vendido com o rótulo de "Beatles brasileiros". Uma típica sessão de macumba para turista; desta vez, Rita vai de baiana, Arnaldo de índio e Sérgio de cangaceiro. Até o primeiro LP individual da mutante, Build Up (1970), vem embrulhado em uma promoção da Rhodia, embalando Rita de modelo.
Por essas e outras, o tempo vai fechando sobre o teto dos três. A chuva de boatos e fofocas sobre a separação engrossa com o lançamento de um novo disco da cantora a sós, apesar de produzido por Arnaldo, com quem se casara. O título é dos mais sintomáticos: Hoje É o Primeiro Dia do Resto do sua Vida. Rita deixaria os Mutantes? Ela desmente... por pouco tempo.
Em 1973, a gravadora Phonogram prepara uma grande festa-show com todo seu elenco. Atrações: surpresas suculentas, como os duetos Gilberto Gil/Chico Buarque e Caetano Veloso/Odair José. Entre elas, Rita lança com a amiga Lúcia Turnbull sua nova aventura: o nome é As Cilibrinas; o som só voz e violão.
Nos Mutantes, Rita compunha uma boa fatia do repertório e das gracinhas corrosivas. Quem traçava as coordenadas, porém, era Arnaldo, que às tantas pretendia uma virada para o estilo dos grupos progressivos ingleses; Trocando em miúdos: adeus letras debochadas, alo misticismos seriosos; adeus suingue e requebrado, alo firulas e pompas classicosas. Na época, a loirinha estava, inclusive, mais ligada no pop futurista de David Bowie. Resultado: tingiu também o cabelo de vermelho e se mandou.
Mas As Cilibrinas não podiam mesmo durar muito. Venceram as saudades da eletricidade e da cozinha pesada, o bloco baixo-bateria. Quando chega a hora de entrar no estúdio, Rita já tinha acoplado o Tutti Frutti, grupo ao gosto: rock entre o cru e o malpassado, levemente pesado, altamente dançável. A festa desse primeiro encontro, Atrás do Porto Tem uma Cidade (1974), marca o pulo fora da Philips/Phonogram.
Pois Rita não tinha gostado nada da "limpeza" feita pela gravadora no som da banda. Mesmo com a reviravolta tropicalista, uma batalha mais dura ainda emperrava a guerra da digestão. Pelo menos, enquanto encarregavam técnicos de filtrar o rock ao gosto do "consumidor comum": ou abaixam as guitarras, ou tapam tudo com a voz. No caso dela, a gota d'água pingou quando, às escondidas, revestiram a música Menino Bonito de violinos açucarados.
Na Som Livre começa a decolagem até o capítulo de hoje, Rita Lee Superstar. Aproveitando o embalo de Ovelha Negra (1975), espalhada em cadeia de rádio e TV, sai com o Tutti Frutti numa excursão missionária, até a Amazónia, levando rock'n roll. Roqueiros de todo o país, então em quase absoluto jejum, dançavam e se lambuzavam. Iluminação multicolorida, som estrondoso mas cristalino, todos os ingredientes do espetáculo rock-ao-vivo-para-os-cinco-senti-dos. De repente, Rita Lee era a primeira e única dama desse bando de órfãos.
Para ela, um fruto dessa caravana é o sonho fixo em todas as entrevistas da época: molhos e temperos para o "roquenrou" à brasileira. Tanto achou a trilha que Lança Perfume vendeu, em 1981, milhares de cópias na França e na América do Sul. Mas os últimos degraus para o panteão não podem ser contados sem a entrada em cena de Roberto de Carvalho.
A hora é oportuna. Em 1976, ele aparece entre várias turbulências. Primeiro, Entradas e Bandeiras — o LP composto durante a tournê missionária — faz despencar o pique das vendagens e tira o Tutti Frutti de campo. Superestafada, Rita acaba deixando o disco semipronto para o grupo completar. O resultado é o extremo oposto dos "baixos-teores" que provocaram o atrito com a Philips; ou seja, toneladas de pauleira enterrando sua voz. Com Roberto assumindo guitarra e teclados, as sobras do Tutti Frutti são reformadas com o nome Cães & Gatos.

Na sequência, vem a prisão por um punhado de maconha. Desta vez quem se lambuza é a imprensa em manchetes marrons, mas ela, grávida, consegue se safar. Agora, Roberto passa também a acumular a pasta de empresário. E a volta por cima é das mais divertidas.
Com o velho amigo Gil — preso algum tempo antes pelo mesmo motivo — Rita cai na estrada com o show Refestança (que deu o único disco ao vivo da roqueira). Para o ponto alto, a dupla vai pescar É Proibido Fumar no baú da jovem Guarda. Pouca irreverência perto de Arrombou o Festa, que joga de Chico Buarque a Benito de Paula no mesmo saco da MPB seriosa. Apesar de um ou outro protesto furioso, o compacto faz rir os quatro cantos do país. E, como a MPB não se toca, ela volta à carga, no ano de 1979, com Arrombou a Festa nº 2.
Quando o guitarrista-empresário entra de parceiro, o casal passa a aprender e cultivar a arte de agradar a todos os paladares. Nesse LP de 79, o rock é apenas um entre os ritmos da salada pop. Tem até uma discothèque descarada, para horror da legião roqueira que começa a resmungar da deserção. Choramingos à parte, o disco vende quase meio milhão de cópias. O grande sucesso, Mania de Você, inaugura uma Rita Lee romântica de fina sensualidade, hoje marca-registrada.
Consagrada como primeira-dama da música pop brasileira, todos os antigos sussurros de "gringa imperialista" entram para a lata de lixo da história. De repente, passam inclusive a considerar seu arsenal de duplos-sentidos descendente direto das marchinhas do mestre Lamartine Babo. Transbordando de adoração, Caetano Veloso a cita como a "mais completa tradução" de São Paulo. E, para finalizar, vem o aval de João Gilberto, convidando-a para cantar em seu especial para a TV.
Ele, por sua vez, comparece no último disco de Rita em uma gozação dos sambas ufanistas à La Aquarela do Brasil. Com o nome de Roberto de Carvalho já dividindo as honras da capa, o LP retoma o sucesso de Lança Perfume — o anterior, Saúde, vendera apenas a metade. Além disso, escancara-se ainda mais o horizonte pop do casal, atacando de foxtrot, ritmo que embalou os bailinhos da vovó.
Avós e netinhos se misturam à juventude dourada nas platéias que lotam a excursão milionária no verão 82/83. Em efeitos especiais e folia generalizada, organização e entourage, o show não deve nada às superproduções do circo do rock internacional.
No balanço final, 23 cidades e um público total superior a dois Maracanãs. Nas agendas do parceiro-empresário, planos para disseminar a febre planeta afora. Pode ser que todas as brigas e batalhas sejam coisa do passado. Pode ser até que uma nova safra de rocks engraçadinhos — chamados por aí de "filhos de Rita Lee" - esteja superpovoando as trincheiras cavadas desde os tempos dos Mutantes. Mas as aventuras da "viúva de James Dean" não terminam aqui.